terça-feira

Carlos

Carlos não sabia bem o que fazer com os sapatos de couro marrom, mas considerou uma boa escolha tê-los. Poderia levá-los para dançar ou a uma boa casa de massas, se assim desejassem; era uma questão de humor que facilmente se resolveria com uma conversa franca diante da cama. Talvez tivessem algum atrito para escolher entre lasanha e guisado, considerando serem os mais deliciosos pratos criados pela humanidade. Mas a solução estaria na alternância. Quartas e domingos, lasanha. Terças e sextas, guisado.

Estavam polidos e não tinham rugas. Carlos imaginou que, se reluzissem, ela não perceberia que ele próprio estava tomado de sulcos entre os olhos e os cabelos ralos. Não saberia explicar em que momento as pregas foram cavadas em torno dos olhos. Sempre pensou que estaria pronto, mas acordar cinco anos mais velho todos os dias prejudicava a compreensão que tinha de si.

Titubeou antes de calçá-los. A barba coçou perto do queixo em sinal de reprovação. Uma falha na costura denunciava as décadas de dedicação. Justo agora.

sábado

Madalena

Quando sentada, as costas para a janela, ela deparou o vazio das cômodas inundadas de escuridão. Ainda era terça-feira, mas o sol já anunciava o passado há mais de uma hora. Apesar do frio, nenhum sinal satírico do relógio anoitecia o quarto, por mais que ela tentasse achar razão. Era menor o cansaço do que imaginaria se narrasse o fato para si. Engraçado.

Tossiu duas vezes. Era ela que quebrara o silêncio, depois seguida pelo ranger da cadeira. Pensara que não era de balanço, mas talvez estivesse enganada sobre isso também. Sendo esse o quarto engano que contara nas três noites em que se dedicou a encarar os móveis. Só ela os cometia. Os móveis, estáticos diante dos olhos pardos que os fitavam, permaneciam certos em suas afirmações. Mas era já de se imaginar que pensassem assim. Sempre a alertaram para o erro; foi ela a responsável por não perceber as falhas no chão. Por isso mancava. E pensar que acreditou por décadas que tinha uma perna mais curta.

*

Se cerrasse a boca de imediato, era possível que deixasse de sentir o vento entrar pelos pulmões. E como não sentia prazer na dor, preferiu agir cuidadosamente para não impedir o oxigênio nas veias. Mas precisava calar. Pensou que era essa a única solução para que também se calassem a escrivaninha e o sofá que a fitavam em condenação. Não só a vista, mas também os gritos. Eram mais altos que a terra que entupia os ouvidos. E eles não calavam.

a.

Outono.

b.

Pensou que, se cerrasse a si, ambos teriam também de encerrar a discussão. Afinal, a sabatina só funciona se há quem a responda.

Teria já usado essa estratégia antes. Era uma pergunta, mas não soube colocar as interrogações e os pingos nos Is. Os Is, pensava, eram maiúsculos como a mãe que ela não poderia ser. Jamais tentara, por falta de química ou álcool, mas imaginava que não poderia. Era justo. A boca seca não traria bons frutos, nem as mãos juntas em forma de concha à beira do mar. Buscava água porque desidratava-se por pensar demais.

Abaixou-se imaginando passar por entre as pernas o lago que ouvia em seus sonhos. Não sonhava há meses, então parecia certo que era real. O lago, a cadeira, os móveis e a cristaleira em disposição lógica. Faltava o chão, manco como a outra que ela imaginava ser antes de poder culpá-lo. Ora cúmplice ora vítima da própria falha.

Distraída pelo som líquido da maré, não se deu conta quando enfim os lábios cerraram. O som e a casa cessaram. Os olhos, as lágrimas, os dias tramados em cortinas doces como ela nunca provara antes se apagaram no brilho fosco da lâmpada já sem força de tanto gritar.

Ainda era dia? Ainda era tempo?

Quase não notou que esquecera das horas permanecidas no local da execução.